Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5634/19.7T8STB-A.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: MENOR
CUSTÓDIA
RESIDÊNCIA HABITUAL
GUARDA DE MENOR
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL
ALTERAÇÃO DO PODER PATERNAL
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando se verifiquem dois pressupostos: primeiro, a violação de um direito de custódia atribuído pelo Direito do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; segundo, o exercício efetivo desse direito no momento da transferência ou da retenção [cfr. art. 3º, 1º §, als. a) e b)] da Convenção da Haia de 1980 e art. 2º, nº 11, do Regulamento (CE) 2021/2003.
II – É condição da ilicitude da deslocação ou retenção, que a guarda estivesse efetivamente a ser exercida pelo progenitor que pretende o regresso da criança deslocada ou retida; ou devesse estar, se isso não tivesse sucedido.
III – Não exerce o direito de custódia de forma efetiva o progenitor não guardião que desde julho de 2017 – data da separação dos progenitores - até à presente data, não entrega à progenitora qualquer quantia monetária por conta dos encargos com a educação, saúde, vestuário e demais despesas necessárias à subsistência do filho de ambos; não contata regularmente com o filho, seja através de convívios presenciais, seja através de telefonemas; não pernoita com o menor aos fins de semana ou durante a semana; apenas estava com o filho em festas de aniversário de familiares e no Natal, em casa dos avós paternos, sendo tais convívios possibilitados pela mãe e pela madrinha da criança, que a transportavam esta até aquela casa. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
O Ministério Público instaurou o presente procedimento de entrega do menor I…, filho de A… e de N…, ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, 3.º, 4.º e 5.º da Convenção de Haia de 1980 (Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças) e artigos 8.º, 9.º, 10.º e 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho de 27 de novembro.
Alegou, em síntese, que a criança de nacionalidade luxemburguesa, deslocou-se a Portugal na companhia da sua mãe, a qual solicitou ao pai que autorizasse a saída do menor do Luxemburgo para território nacional, tendo em vista o gozo de um período de férias. Contudo, a mãe do menor não regressou com o menor ao Grão-Ducado do Luxemburgo, tendo, ao invés, estabelecido residência em Portugal, na localidade da Quinta do Conde, concelho de Setúbal, sem o consentimento do progenitor, razão pela qual este último formulou pedido de regresso do menor junto da Autoridade Central do Luxemburgo.
Citada, a requerida apresentou oposição, requerendo que o Tribunal recusasse o regresso do menor ao Luxemburgo, alegando, em resumo, que se encontra separada do pai do I… desde julho de 2017, e que desde essa data a criança se encontra a residir consigo, não exercendo o progenitor de facto as responsabilidades parentais referentes ao filho de ambos. Nesse seguimento referiu que desde a separação e até à presente data, o pai não contribuiu para o sustento da criança, não a visita, denotando uma atitude de absoluto alheamento da vida do I….
Termina dizendo que a criança se encontra atualmente bem integrada em Portugal, a nível escolar, social e familiar, residindo com a progenitora, a avó materna e o companheiro desta última, referindo que mantém uma relação de maior proximidade afetiva com a família materna do que com a família paterna.
A requerida arrolou testemunhas e juntou prova documental.
Notificado o progenitor da oposição deduzida, o mesmo arrolou testemunhas.
Foram tomadas declarações a ambos os progenitores, procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas e à audição da criança e, a final, foi proferida que julgou a retenção em território nacional da criança I…ilícita e, consequentemente, ordenou o seu regresso ao Luxemburgo.
Inconformados com o assim decidido, apelaram o Ministério Público e a requerida progenitora, pugnando pela revogação da sentença, entendendo não estar verificada uma situação de retenção ilícita do I….
O Ministério Público finalizou as alegações com as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso versa exclusivamente sobre matéria de Direito uma vez que a matéria de facto provada merece a nossa plena concordância.
2. A matéria de facto provada conduz à conclusão de que, até à deslocação da criança I… para Portugal, em Julho de 2019, desde a separação dos progenitores verificada em Julho de 2017, o progenitor (que solicita o regresso da criança legitimado pela atribuição legal de um direito de custódia) conviveu com o filho por ocasião de festas familiares (de aniversário e Natal), ocasião em que o transporte foi assegurado pela madrinha da criança ou pela própria progenitora.
3. A matéria de facto provada conduz à conclusão de que até à deslocação da criança I… para Portugal, em Julho de 2019, desde a separação dos progenitores verificada em Julho de 2017 o progenitor não prestou qualquer cuidado ao seu filho nem esteve de qualquer outro modo presente na vida deste, nem sequer através da repartição dos encargos com a sua educação, saúde, vestuário ou despesas inerentes à satisfação das necessidades básicas.
4. Assim, a factualidade dada por provada impõe que se conclua que o progenitor tinha o direito de custódia da criança mas se demitiu do seu efetivo exercício; não se ausentou, em termos absolutos, da vida do filho mas também não esteve presente na prestação “dos cuidados à criança nos aspetos mais significativos da sua vida (acompanhamento escolar, saúde, alimentação, …”); não exerceu efetivamente o direito de custódia que a Lei Luxemburguesa lhe atribui.
5. É pressuposto de uma decisão de regresso que se considere que houve, por parte da progenitora, uma violação do direito de custódia atribuído ao progenitor, tendo presente os termos do art. 3º, al. a) da Convenção e da al. a) do nº 11 do art. 2º do Regulamento – o que não se discutimos ter existido.
6. Mas é igualmente pressuposto daquela decisão que tal violação seja considerada ilícita, sendo pressuposto desta ilicitude que o direito de custódia violado estivesse a ser exercido de forma efetiva, conforme estabelece a al. b) do mesmo preceito e o art. 12º da Convenção, bem como o art. 2º, nº 11, al. b) do Regulamento.
7. In casu, impõe-se concluir que a intervenção do progenitor na vida do seu filho não é suficiente para se ter por preenchido o conceito de exercício efetivo do direito de custódia e, consequentemente, um de dois caminhos resta: ou considerar lícita a retenção da criança em Portugal ou, considerando-a ilícita, recusar a entrega da criança, numa interpretação da al. a) do art. 13º da Convenção menos restritiva do que a exposta na douta sentença recorrida.
8. O primado de todas as Leis que regem em matéria de Direitos da Criança é o da defesa do seu Superior interesse.
9. A interpretação restritiva do disposto na al. a) do art. 13º leva a decisões em que tal interesse cede; leva ao extremo de se ter por admissível a prolação de decisão de recusa da entrega nas situações em que o retentor não é o habitual guardião mas já não naquelas em que o retentor é quem sempre prestou e presta cuidados à criança de forma exclusiva; conduzindo a decisões, como a ora recorrida, de determinação do regresso de uma criança ao país onde o progenitor não guardião reside mas não “está lá” para assegurar as suas necessidades, com a possibilidade até da criança se ver afastada da progenitora, com quem sempre viveu e sempre dela cuidou (hipótese que sempre será de se colocar considerando o atual contexto mundial e as dificuldades que esta poderá encontrar na tentativa de regresso).
10. Ainda que se concorde com a interpretação restritiva da Mmª Juíza recorrida, no caso dos autos não há, porém, que lançar mão do disposto nos arts. 12º e 13º, al. a) da Convenção porquanto, perante a factualidade provada, impõe-se formular conclusão oposta à vertida na douta sentença recorrida – isto é, impõe-se concluir pelo não exercício efetivo do direito de custódia pelo progenitor requerente do regresso da criança e, consequentemente, concluir ab initio pela licitude da retenção, falhando consequentemente os pressupostos de aplicação dos arts. 12º e 13º da Convenção.
11. Ao decidir como decidiu a Mmª Juíza violou o preceituado nos arts. 3º, al. b), 12º, 13º, al. a) da Convenção e 2º, nº 11, al. b) do Regulamento porquanto a aplicação dos arts. 12º e 13º da Convenção só é admissível quando a violação do direito de custódia ocorra perante um exercício efetivo desse direito, tal qual o pressupõem o art. 3º, al. b) da Convenção e o art. 2º, nº 11, al. b) do Regulamento, o que, in casu, não se verificou.
12. E não se tendo verificado uma situação de retenção ilícita são inaplicáveis as normas internacionais supra citadas, não sendo de determinar o regresso imediato da criança ao Luxemburgo.»

Por sua vez, a progenitora/requerida rematou a respetiva alegação com as conclusões que se transcrevem:
«1. O presente recurso tem em vista a reapreciação da prova gravada pelo veneranda Relação de Évora, porquanto não nos parece que tenha sido feita prova dos factos dados como provados nos pontos 10 e 19 nos precisos termos ali vertidos;
2. Com efeito, a Recorrente não veio para Portugal com o deliberado, antecipado e predeterminado propósito de, ab initio, fixar aí a sua residência permanente e definitiva, com o seu filho;
3. A Recorrente em momento algum se manifestou disponível, caso fosse (como foi) ordenado o regresso da criança ao seu país de origem, para voltar para o Luxemburgo, onde, agora, não possui nem casa, nem trabalho e em cujo país teria de recomeçar tudo do zero, sendo obrigada a ali permanecer contra a sua vontade e apenas para que o progenitor continuasse a não se interessar pelo filho de ambos, a não o visitar, não o ir buscar, etc.!...
4. Da factualidade provada, terá de se concluir que o progenitor não tinha o direito de custódia e de guarda do menor, ainda que partilhado conjuntamente com a sua ex-companheira, até porque a noção de guarda ou de custódia não reside apenas no direito de fixar residência da criança, mas também (e sobretudo) na prestação de cuidados pessoais à criança inerentes à coabitação entre esta e o progenitor privado da sua companhia e educação quotidianas e no que a estes respeita o pai mostrou-se sempre desinteressado, completamente inábil, irresponsável, inidóneo e incapaz;
5. Para a Convenção de Haia, o exercício actual dos direitos de custódia na pessoa do progenitor requerente é um dos elementos essenciais que a mesma visa proteger;
6. Mas, a produção de prova resulta, de forma cabal e segura, que o progenitor se demitiu completamente das funções de pai, cujos deveres e responsabilidades efectivamente não interiorizou e menos ainda praticou, votando o filho a uma situação de autêntico desprezo ou abandono de tal modo que nem sequer num súbito episódio de doença do mesmo se mostrou disponível para lhe acorrer!....
7. Um “pai” assim, manifestamente, não tem, não pode ter, o direito de condicionar o filho e a sua ex-companheira numa decisão de mudança de residência, porque a exemplo de outras de maior relevância se alheou e eximiu do exercício dos seus deveres, das suas obrigações, das suas responsabilidades, sendo certo que o Tribunal deverá sempre decidir cumprindo com a Constituição, com os tratados e as convenções internacionais que vinculam o Estado português.
8. Na obtenção de uma decisão justa neste tipo de processos, o julgador deverá recorrer-se não apenas dos factos alegados ou levados ao processo pelas partes, mas, porque estamos no âmbito das providências tutelares cíveis e, consequentemente, dos processos de jurisdição voluntária (artigos 986.º e seguintes do Código de Processo Civil), com a sua dinâmica própria, deve decidir todas as questões subordinando os interesses envolvidos ao interesse daquele que lhe incumbe tutelar e salvaguardar: o superior interesse da criança (artigo 3.º da Convenção dos Direitos da Criança).
9. “Esta prevalência do superior interesse da criança não implica, de modo algum, a desconsideração dos outros interesses, designadamente dos progenitores ou da própria salvaguarda da execução das decisões proferidas, significando antes a subordinação destes interesses a um interesse considerado prevalecente: o superior interesse da criança”.
10. Ao concluir-se nos presentes autos, como deveria ter sido feito, pelo não exercício efectivo do direito de custódia e que, consequentemente, não lhe cabia manifestar-se, autorizando ou não a mudança de residência para Portugal, nem sequer se verifica a ilicitude da deslocação, mais concretamente da retenção de menor, razão porque não estamos perante uma situação de rapto internacional de criança, não sendo aplicável a Convenção de Haia e não havendo lugar ao procedimento de regresso imediato de I… ao seu país de origem;
11. Admitir-se o contrário seria infligir uma dupla punição ao menor, prejudicando de forma consideravelmente grave e desproporcionada o seu futuro ou desenvolvimento equilibrado, o que atenta contra o primado do superior interesse da criança;
12. A imposição da decisão de regresso ao país de origem implicaria ainda uma gritante violação dos direitos fundamentais da mãe, garantidos pela Constituição da República Portuguesa, dos tratados internacionais que vinculam o nosso Estado e das suas demais leis aplicáveis na matéria.
13. Com a sua decisão, o juiz a quo violou, entre outros princípios e preceitos de direito internacional, o disposto na alínea b) do artigo 3.º, no artigo 12.º e 13.º, alínea a) da Convenção de Haia e o artigo 2.º, número 11, alínea b) do Regulamento Bruxelas bis II.»
O progenitor/requerente contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se deve ser alterada a matéria de facto constante dos pontos 10 e 19 dos factos provados (recurso da progenitora);
- se perante a deslocação não autorizada da criança I… do Luxemburgo para Portugal, deve ou não ser ordenado o seu regresso ao país de origem (ambos os recursos).

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. I… nasceu a 30.04.2012, no Luxemburgo, sendo filho de A… e de N….
2. Os progenitores do menor separaram-se em julho de 2017, tendo a criança I… ficado entregue aos cuidados da progenitora, residindo juntamente com a mãe em …, Rue du …, L – 4670, Differdange, no Luxemburgo e o progenitor continuou a residir em …, Rue du …, L – 4520, Esch, no Luxemburgo.
3. Desde julho de 2017 até à presente data, o progenitor não entrega à progenitora qualquer quantia monetária por conta dos encargos com a educação, saúde, vestuário e demais despesas essenciais à subsistência do filho menor de ambos.
4. Desde a separação dos progenitores que a criança I… não pernoita com o pai, seja nos fins-de-semana, seja durante a semana, não existindo dias acordados para as visitas e convívios entre o menor e o progenitor.
5. O I…, após a separação dos pais, convive com o pai essencialmente em ocasiões festivas, nomeadamente em festas de aniversário de familiares, no Natal, realizadas na casa dos avós paternos, onde o progenitor se encontra a viver.
6. No âmbito da realização de tais convívios, era a progenitora ou a madrinha do menor quem se encarregavam do transporte do I… até a casa dos avós paternos.
7. O pai não contatava regularmente com o filho, fosse através de convívios presenciais, fosse através de telefonemas.
8. A progenitora, desde a separação, sempre fomentou e autorizou que a criança I… convivesse com o pai, com os avós paternos e demais familiares paternos.
9. Em julho de 2019, a pedido da progenitora, o progenitor autorizou que a criança I… viajasse de férias do Luxemburgo até Portugal.
10. A progenitora saiu do Grão-Ducado do Luxemburgo e veio para Portugal com o menor I… e fixou a sua residência em território nacional, sem a autorização do progenitor, o qual se opõe à permanência do seu filho em Portugal.
11. Em 06.09.2019, a Requerida, na qualidade de progenitora da criança I…, intentou ação especial atinente à regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes ao menor, contra o progenitor, o aqui Requerente, a qual se encontra atualmente pendente neste Juiz 2 do Juízo de Família e Menores de Setúbal, a correr os seus termos sob o n.º 5634/19.7T8STB, da qual estes autos se encontram apensos.
12. Por despacho datado de 25.11.2019, proferido nos autos principais de regulação das responsabilidades parentais foi decidido que « atento o teor do ofício da DGRSP, estando pendente pedido de regresso da criança, ao abrigo do disposto da Convenção de Haia de 1980, de 25 de Outubro, Regulamento CE n.º 2201/2003, do Conselho de 27.11.2003 sobre os aspetos civis de rapto internacional de crianças, apresentado pelo progenitor junto da autoridade central de Luxemburgo, declaro a suspensão da presente instância, até decisão a proferir no referido processo (arts. 16.º da Convenção de Haia de 25.10.1980, e 272.º, 1 CPC).
13. Em 29.10.2019 o progenitor formulou pedido de regresso do menor junto da Autoridade Central do Luxemburgo.
14. O progenitor exerce atividade profissional inerente à função de motorista de autocarros, no Luxemburgo.
15. A progenitora trabalha num lar de idosos, em Portugal.
16. Desde setembro de 2019, a criança I… encontra-se matriculada e frequenta o Agrupamento de Escolas da …, em Sesimbra.
17. O I… fala e compreende a língua portuguesa.
18. A criança vive atualmente com a sua progenitora, com a sua avó materna, e com o companheiro desta última, na ….
19. Caso seja ordenado o regresso, a progenitora disponibiliza-se a acompanhar o seu filho I… no regresso até ao Luxemburgo.

Considerou-se na decisão recorrida inexistirem factos por provar.

Da reapreciação da prova gravada em resultado da impugnação da matéria de facto.
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, depoimentos testemunhais e declarações dos progenitores registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por elas propugnados, referiu ainda que implicitamente a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e também não deixou de indicar as passagens da gravação em que funda o recurso, transcrevendo mesmo essas passagens no corpo das alegações, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Diz a recorrente que lhe «parece que tenha sido feita prova dos factos dados como provados nos pontos 10 e 19 nos precisos termos ali vertidos», argumentando «que não veio para Portugal com o deliberado, antecipado e predeterminado propósito de, ab initio, fixar ai a sua residência permanente e definitiva, com o seu filho», e que «em momento algum se manifestou disponível, caso fosse (como foi) ordenado o regresso da criança ao seu país de origem, para voltar para o Luxemburgo, onde, agora, não possui nem casa, nem trabalho e em cujo país teria de recomeçar tudo do zero, sendo obrigada a ali permanecer contra a sua vontade e apenas para que o progenitor continuasse a não se interessar pelo filho de ambos, a não o visitar, não o ir buscar, etc.!...».
No ponto 10 deu-se como provado que «[a] progenitora saiu do Grão-Ducado do Luxemburgo e veio para Portugal com o menor I… e fixou a sua residência em território nacional, sem a autorização do progenitor, o qual se opõe à permanência do seu filho em Portugal».
E no ponto 19 foi dado como provado que «[c]aso seja ordenado o regresso, a progenitora disponibiliza-se a acompanhar o seu filho I… no regresso até ao Luxemburgo».
Adiantamos, desde já, que não assiste razão à recorrente. Senão vejamos.
Quanto à matéria do ponto 10, a recorrente admitiu a factualidade em causa, como resulta claramente das suas declarações prestadas em 11.03.2020, entre o minuto 17’10 e o minuto 17’29’’:
«Mm.ª. Juíza: “Regressando às suas declarações (…) não tinha mais nada, no fundo, que, a prendesse ao Luxemburgo (…) prossiga lá. Decidiu vir para Portugal…
Progenitora: Sim. Tinha cá os meus pais, a minha mãe, o meu padrasto…
(…)
E entre o minuto 18’05’’ e o minuto 18’49’’:
Mmª Juíza: mas tinha aqui um menor. E então: comunicou ao pai que viria fixar residência aqui para Portugal? (…)
Progenitora: Nunca disse. Claro que não. Eu acho que… ele nunca na vida me ia deixar vir assim (impercetível).
Mmª Juíza: O pai o que nos disse aqui foi que a senhora terá pedido, solicitado uma autorização escrita para levar a criança consigo por um período de férias, com o compromisso de a criança regressar dia 15 de setembro. Isto é verdade?
Progenitora: É verdade sim. Eu disse-lhe que ia de férias.
E entre o minuto 20’08’’e o minuto 20’15’’:
Mmª Juíza: Pronto. Então… a senhora admite que o pai não deu autorização para a senhora fixar aqui residência com a criança e que a senhora também não pediu essa autorização?
Progenitora: Isso não. Nunca pedi porque sabia que ele não…».
Ora, face a estas declarações não se vê como colocar em causa que este facto tenha sido considerado provado por acordo, já que se trata de facto alegado pelo progenitor (falta de autorização e da oposição à permanência) e admitido pela progenitora/recorrente.
També não assiste razão à recorrente quanto à impugnação deduzida contra o ponto 19 dos factos provados.
Na verdade, a Exma. Procuradora perguntou diretamente à recorrente se em caso de decisão que ordenasse o regresso da criança, a mesma ficaria em Portugal, tendo aquela respondido de forma clara e a não deixar a menor dúvida, de que perante uma eventual decisão de regresso do filho, regressaria também ela ao Luxemburgo, como resulta, aliás, das passagens das declarações da recorrente indicadas quer pela própria no corpo das alegações do recurso que interpôs, quer pelo progenitor/recorrido nas contra-alegações, passagens essas para as quais se remete.
Questão diferente é a recorrente não aceitar de bom grado tal regresso.
Nenhuma censura merece, pois, a consideração como provada da factualidade constante do ponto 19.
Resulta, assim, do exposto que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Da licitude/ilicitude da retenção da criança em Portugal
Na resposta a esta questão o Tribunal a quo teve em consideração, por um lado, a Convenção da Haia de 1980 sobre os aspetos civis do rapto internacional de crianças, a qual foi aprovada pelo Estado português através do Decreto nº 33/83, de 11 de Maio, e em vigor no nosso ordenamento jurídico desde 1 de dezembro de 1983 e, por outro lado, o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de Decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental, publicado no JO L338de 23.12.2003, aplicável desde 1 de março de 2005 em todos os Estados-Membros da União Europeia, com exceção da Dinamarca[1].
À luz do seu Preâmbulo e do seu artigo 1º, a Convenção da Haia é um instrumento de cooperação judiciária internacional que tem um duplo objetivo.
Por um lado, assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente.
Por outro, fazer respeitar de modo efetivo nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante.
O “direito de custódia” reporta-se à responsabilidade pelos cuidados devidos à criança, incluindo o direito de decidir sobre o lugar da sua residência [art. 5º, al. a)].
Quanto ao “direito de visita”, releva para a Convenção fundamentalmente o direito de visita transfronteiriço, que inclui a faculdade de levar a criança para um país diferente do da sua residência habitual por um período limitado de tempo [art. 5º, al. b)].
A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita. São abrangidas as crianças com idade inferior a 16 anos (art. 4º).
Como refere Luís de Lima Pinheiro[2], «[a] expressão “rapto internacional” - utilizada para designar a Convenção –, não traduz bem a realidade social subjacente, que é normalmente o desenlace dramático de um casamento ou união transnacional. A criança é vítima deste drama, como o são os seus pais. Nos casos mais paradigmáticos, os pais separam-se e um deles, as mais das vezes a mãe, regressa ao seu país de origem levando consigo a criança sem autorização do pai. As razões da deslocação da mãe para outro país são variáveis: frequentemente razões compreensíveis de natureza económica e afetiva, mas por vezes também o desígnio de privar o pai da convivência com a criança.
Perante este drama, o regime da Convenção exprime a seguinte valoração: a criança deve regressar o mais rapidamente possível ao país onde tinha a residência habitual antes da deslocação ou retenção, uma vez que a autoridade competente deste país é a mais bem colocada para decidir sobre a custódia e a residência, e que a permanência da criança noutro país tende a dificultar a adoção das soluções mais adequadas (…)».
A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando se verifiquem dois pressupostos [art. 3º, 1º §, als. a) e b)].
Primeiro, a violação de um direito de custódia atribuído pelo Direito do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção.
Segundo, o exercício efetivo desse direito no momento da transferência ou da retenção.
O direito de custódia em causa pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o Direito deste Estado [art. 3º, 2º §].
Com esclarece Luís de Lima Pinheiro[3], «[o] preceito deve ser interpretado no sentido de abranger qualquer título de atribuição do direito de custódia vigente na ordem jurídica da residência habitual. Razão por que a referência ao Direito do Estado da residência habitual abrange necessariamente o Direito Internacional Privado deste Estado».
O Regulamento (CE) 2021/2003, à semelhança da Convenção da Haia de 1980, pretende desencorajar a subtração (ou rapto) de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, não obstante, se tal suceder, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estrado-Membro de origem.
O acima citado artigo 3º da Convenção da Haia encontra correspondência no artigo 2º, nº 11 do Regulamento, que entende como “deslocação ou retenção ilícitas de uma criança”, a deslocação ou a retenção de uma criança, quando:
a) Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e
b) No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera-se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.
O Tribunal a quo entendeu estarmos perante um caso de retenção ilícita da criança I…, tendo para tanto ponderado o seguinte na decisão recorrida:
« (…), importa antes do mais convocar os preceitos normativos da lei luxemburguesa, nomeadamente o art. 375.º do respetivo Código Civil, o qual refere que os pais exercem a autoridade parental em comum, donde se extrai que segundo a lei luxemburguesa o direito de fixar o domicílio dos menores pertence a ambos os progenitores, sendo que qualquer alteração da residência da criança para país estrangeiro exige sempre o consentimento dos pais, por se tratar de uma questão de particular importância, à semelhança, aliás, do preceituado pela lei portuguesa.
Acresce que, conforme resulta da factualidade apurada, os pais do I… separaram-se em Julho de 2017, data a partir da qual a criança ficou a residir com a progenitora em … – 4670, Differdarge, no Luxemburgo.
Ficou igualmente provado que, em Julho de 2019 o progenitor, o ora Requerente, autorizou que o seu filho menor se deslocasse de férias na companhia da progenitora até Portugal.
Mais se provou que a progenitora viajou do Grão-Ducado do Luxemburgo até Portugal com o menor I… e, nessa sequência, fixou a sua residência e, bem assim, a da criança em território nacional – mormente, na … – sem o consentimento do progenitor, o qual, ademais, se opõe à permanência definitiva do seu filho em Portugal.
Ou seja, extrai-se da factualidade apurada que a criança I… se deslocou do estado onde residia (Luxemburgo) até Portugal, com a autorização do progenitor, contudo, este último não consente que o menor passe a residir em Portugal.
Assim sendo, ante a tal quadro factual e face ao regime instituído pelo art. 375.º do Cód. Civil do Luxemburgo, forçoso é concluir que a permanência do menor I… é ilícita à luz dos artigos 3.º, 5.º alínea a) da Convenção de Haia de 1980 e 2.º, n.º 11, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 por uma dupla ordem de razões, em primeiro lugar, porque o pai não consentiu na alteração da residência habitual do menor I… para Portugal e, porquanto em segundo lugar, a permanência da criança em Portugal, sem o acordo do progenitor e à revelia da sua vontade, viola o direito do pai a decidir sobre o lugar da residência do filho.
Em conformidade, ajuíza-se a retenção do menor I… em Portugal ilícita, ao abrigo dos critérios normativos suprarreferidos.»
Como faz notar a decisão recorrida, in casu o progenitor consentiu na deslocação da criança, mas não consentiu na permanência da mesma em Portugal. Daí que esteja em causa uma situação de retenção, sendo esta conclusão indiscutível.
Considerando, porém, o quadro factual apurado, não podemos acompanhar o entendimento que veio a ser acolhido em tal decisão.
A propósito do significado do conceito “retenção ilícita”, refere Maria dos Prazeres Beleza[4] que se exige, «como condição da ilicitude da deslocação ou retenção, que a guarda estivesse efectivamente a ser exercida pelo progenitor que pretende o regresso da criança deslocada ou retida; ou devesse estar, se isso não tivesse sucedido».
Neste mesmo sentido se pronunciou Ana Teresa Pinto Leal[5]:
«(…). O direito de custódia, consagrado no art.º 3.º, al. a), da Convenção da Haia de 1980, pode resultar diretamente das normas legais que regulam esta matéria, de decisão judicial ou administrativa que sobre ela se tenham pronunciado e ainda de qualquer acordo existente, desde que válido à face do direito do Estado respetivo.
(…).
Não é, no entanto, suficiente a existência daquele direito de custódia, já que por força do estabelecido na al. b) do citado art.º 3.º, o exercício de tal direito tem que ser efetivo, significando tal pressuposto que para a aplicação do estatuído na Convenção da Haia de 1980 não basta que ao requerente caiba o direito em causa, mostra-se necessário que esse direito esteja a ser efetivamente observado.
Nos termos do art.º 5.º da Convenção, o direito de custódia é definido como o poder legítimo de decidir sobre o lugar da residência da criança, a ser exercido singular ou conjuntamente e, nesta última circunstância, a decisão tem que ser tomada por acordo dos titulares das responsabilidades parentais.
Por seu turno, na definição dada pelo art.º 2.º n.º 11, al. b), do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, “Considera-se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre o local da residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental”.
(…).
A deslocação ilícita ocorre sempre que haja uma mudança da criança do país onde tem o seu centro de vida para outro, em desrespeito do direito de guarda existente. Sempre que a ida para o outro país tiver sido autorizada pelo outro progenitor, designadamente para passar um período de férias, e depois o regresso da criança não acontecer, esta sua transferência assume a designação de retenção ilícita.
O regresso imediato da criança em situação de deslocação ou retenção ilícitas, preconizado pela Convenção da Haia de 1980, sofre, no entanto, desvios sempre que se mostrem verificadas as circunstâncias previstas nos seus arts.ºs 12.º, 13.º e 20.º. Apuradas estas, pode haver lugar a uma decisão de recusa de regresso da criança. São elas:
· (…);
· O direito de guarda não se encontrar, efetivamente, a ser exercido por quem tinha legitimidade para tal» (sublinhados nossos).
Não parece, pois, oferecer dúvidas que o progenitor que reclama o regresso da criança tem de exercer o direito de custódia de forma efetiva e, como tal, a pergunta que se impõe antes de mais, é a de saber se o pai do I… exercia efetivamente aquele direito quando a criança foi trazida para Portugal pela progenitora.
Vejamos o que nos diz o acervo factual apurado:
- desde julho de 2017 – data da separação dos progenitores - até à presente data, o progenitor não entrega à progenitora qualquer quantia monetária por conta dos encargos com a educação, saúde, vestuário e demais despesas essenciais à subsistência do filho menor de ambos;
- desde a separação dos progenitores que a criança I… não pernoita com o pai, seja nos fins-de-semana, seja durante a semana, não existindo dias acordados para as visitas e convívios entre o menor e o progenitor.
- o pai não contatava regularmente com o filho, fosse através de convívios presenciais, fosse através de telefonemas;
- o I…, após a separação dos pais, convive com o pai essencialmente em ocasiões festivas, nomeadamente em festas de aniversário de familiares, no Natal, realizadas na casa dos avós paternos, onde o progenitor se encontra a viver;
- no âmbito da realização de tais convívios, era a progenitora ou a madrinha do menor quem se encarregavam do transporte do I… até a casa dos avós paternos.
Desta factualidade resulta uma quase absoluta ausência do progenitor em todos os aspetos essenciais da vida do I…, não contribuindo com o que quer que seja para as despesas com a educação, saúde, alimentação e vestuário do filho.
Acresce que após a separação dos progenitores, não cuidou o requerente de ter consigo o seu filho um dia da semana que fosse, ou pelo menos estar com ele, e também não contatava regularmente com o filho, fosse através de convívios presenciais, fosse através de telefonemas, o que não deixa de revelar uma ausência quase absoluta da vida da criança, tudo se resumindo, afinal, a esporádicos contactos em festas de aniversário de familiares e no Natal, realizadas na casa dos avós paternos, onde o progenitor se encontra a viver.
Ora, estes contactos, sempre possibilitados pela ação da progenitora ou da madrinha do I…, são manifestamente insuficientes para se dizer que o progenitor, titular conjuntamente com a progenitora do direito de custódia, face ao que dispõe o artigo 375º do Código Civil do Luxemburgo[6], exercia esse direito de maneira efetiva, condição necessária para que se pudesse considerar ilícita a retenção da criança, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3º, alínea b) da Convenção da Haia e 2º, nº 11, alínea b) do Regulamento 2021/2003.
Tanto basta, pois, para que o procedimento de entrega da criança Ilian seja julgado improcedente e não se ordene o seu regresso ao Luxemburgo.
A idêntica solução chegaríamos se tivéssemos de fazer apelo à normas dos artigos 12º e 13º, alínea a) da Convenção da Haia, não se sufragando a interpretação restritiva deste último preceito feita na decisão recorrida, a qual levaria a que, em situações limite, se considerasse admissível a prolação de uma decisão de recusa da entrega nas situações em que o retentor não é o habitual guardião mas já não naquelas em que o retentor é quem sempre prestou e presta cuidados à criança de forma exclusiva.
Como diz o Ministério Público, isso conduziria a decisões, como a ora recorrida, «de determinação do regresso de uma criança ao país onde o progenitor não guardião reside mas não “está lá” para assegurar as suas necessidades».
Em suma, procedem as conclusões formuladas pelos recorrentes (com exceção, no que toca à apelação da progenitora, das referentes à impugnação da matéria de facto) e, com elas, os respetivos recursos.
Vencido no recurso, suportará o progenitor/requerente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar as apelações interpostas pelo Ministério Público e pela requerida/progenitora N… procedentes e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, não se ordenando o regresso da criança I… ao Luxemburgo por se considerar não ser ilícita a sua retenção em Portugal.
Custas pelo requerente/progenitor.
*
Évora, 24 de setembro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
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[1] Cfr. artigo 72º e considerando (31) do Regulamento, respetivamente.

[2] Comunicação proferida na Conferência “Direito da Família e Direito dos Menores: que direitos no século XXI?”, que teve lugar na Universidade Lusíada, em outubro de 2014, acessível in https://portal.oa.pt/upl/%7B40b76efc-8042-4aa6-92d6-5aa473019980%7D.pdf.

[3] Ibidem.

[4] Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças, Revista Julgar, nº 24, 2014, p. 85.

[5] II Jornadas de Direito da Família e da Criança – O direito e a prática forense” Alteração da Residência da Criança – Questão de particular importância? pp. 44 a 46, in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_JornadasFamiliaC2018.pdf.

[6] O qual refere que os pais exercem a autoridade parental em comum.